quinta-feira, 4 de abril de 2013

Religião Doméstica

Por Kallistos, no site Neos Alexandria

Tradução de Ruan Mendes
Revisão de Thiago Oliveira

Estava lendo um livro chamado “The Ancient City: a study of the religion, laws, and institutions of Greece and Rome” de Numa Denis Fustel de Coulanges, pela editora Dover Books [Nota do Tradutor: “A Cidade Antiga: um estudo da religião, leis e instituições da Grécia e Roma”. Esse é um estudo clássico do helenismo, tendo sido, entre várias publicações, recentemente editado pela Martin Claret – clique AQUI para ter acesso ao texto],uma reedição de um livro francês de 1864. O autor baseia-se principalmente em textos antigos e inscrições, normalmente citadas nos rodapés. Como era costume na época, a maioria das citações está em sua lingual original, porque pessoas educadas saberiam lê-las de qualquer maneira...

O livro traz uma interessante discussão sobre a religião, as tradições e costumes da antiga cidade e seus habitantes. Um ponto importante, que algumas organizações de hoje esqueceram, é que a cidade foi um desenvolvimento tardio. Ela evoluiu como uma federação. Fustel de Coulanges traça um desenvolvimento orgânico dessa federação ao longo do tempo. Esse tipo de evolução é, talvez, um bom modelo para emularmos uma tentativa de desenvolver grupos maiores.

A cidade encontra suas raízes na religião e o autor busca discutir as bases religiosas da cidade, sua centralidade voltada si mesma e a mistura de religião e vida. É essa a chave para o desenvolvimento da cidade antiga.

Tudo começa na religião doméstica. A família tinha sua própria religião e seus próprios deuses, deidades domésticas e seus ancestrais. (Penso que nos dias atuais tendemos a esquecer da importância do culto aos ancestrais no mundo antigo, que rivaliza com a mostrada no Oriente Confucionista). O chefe do lar é o sacerdote da família, e é ele quem mantém o fogo sagrado vivo. Cada pessoa era independente das interferências dos outros; e é o foco da vida do dia-a-dia religioso.

Com o passar do tempo, as famílias começaram a se unir, mas ainda assim mantinham suas religiões originais, embora formassem clãs, frátrias ou cúrias, com seus próprios deuses e patronos, e seu próprio sacerdote chefe, que tendia à adoração perante o fogo sagrado. Em seguida, vários clãs se juntaram e formaram tribos ou φυλές (phyles), também com seus fogos sagrados distintos e sacerdotes. Em intervalos regulares, os cidadãos podiam, como na Apaturia, se unir aos outros da sua frátria/cúria ou phyle/tribo para uma refeição comunal, sacrifício e entoar hinos e orações.

Então, no final, as tribos seriam unificadas por um único homem ou em face aos perigos de fora. A cidade foi fundada pelo fundador ou legislador - que estabelecia as leis, acendia o fogo da cidade e escolhia os deuses oficiais que seriam seus protetores - assim como cada tribo tinha seu herói deificado e cada clã e família seus antepassados e deidades domésticas.

O fundador era o primeiro rei, depois seria substituído por prutaneis, basileus desprovidos do status de realeza. Muito embora eles mantivessem o fogo sagrado aceso e liderassem os rituais sagrados no lugar do rei. (Fustel menciona que Prytane era um sinônimo para Basileus nos textos antigos). Eles também se encontravam numa refeição comunal com os deuses no Pritaneu* todos os meses juntamente com cidadãos selecionados para reforçar a ligação com o povo.

Esse desenvolvimento era orgânico e fluia naturalmente. Penso que um dos maiores problemas com muitos grupos Helênicos (e de Religio) foi que estes pularam direto para a cidade, estabelecendo magistrados e prutaneis, correndo direto ao modelo cidade-estado, então criando o demoi**  (novamente uma organização mais política, embora religiosa, sendo uma espécie de “minipolis”).

Como alternativa, acredito que deveríamos nos focar em ajudar as pessoas a desenvolverem seus próprios cultos domésticos para, em seguida, os unir em equivalentes a genos e frátrias (talvez por interesses em comum) e depois em tribos (quem sabe tendo tribos de determinação geográfica, o que era frequentemente o caso, como as dez tribos de Atenas e as trinta e quatro tribos de Roma).Tendo as tribos com seus demos e proteções poderíamos então estabelecer uma cidade-estado nacional e evoluir. Dessa maneira teríamos produzido situações mais estáveis, permitindo assim crescimento no lugar de tentar forçar uma organização nacional sobre um grupo tão pequeno e disperso como as comunidades pagãs clássicas greco-romanas.

Adicionalmente, uma vantagem do modelo de desenvolvimento orgânico é que as pessoas com interesses semelhantes, ou com focos em deidades similares, poderiam formar algo como uma frátria ou um clã que poderia, por sua vez, formar tribos geográficas com outras frátrias. Eu percebo que alguns formaram thiasoi*** ao longo dessas linhas, e talvez os thiasoi ou frátrias poderiam ser as bases orgânicas que crescem dentro de outras organizações, que formam uma federação ou uma organização do tipo guarda-chuva.

Isso requereria provavelmente mais diplomacia que presenciamos em nossa comunidade, embora eu ache que seja viável. O elemento interessante no livro foi que ele enfatizou o quanto as frátrias e as phyles (clãs e tribos) eram mini-federações próprias, com os níveis mais baixos sendo mais ou menos autônomos, com os níveis superiores sendo um pouco mais diversificadas em relação as deidades adoradas. 

Essa federação das federações permitiria mais distinção e que as preferências pessoais tenham mais importância... Sem forçar todos a um único molde, o que parece ser parte do problema que enfrentamos. Algumas pessoas parecem normalmente ter pouca vontade de se aventurar muito longe de suas deidades de maior interesse (ou patronos, se você desejar). Assim, cada nível poderia encontrar se encontrar esporadicamente (the phyles and phratries met fairly often, but less often the farther one went up) para refeições comunais. A Apatouria, por exemplo, acontecia uma vez ao ano, contudo eu tenho certeza da existência de outras reuniões de frátrias. As frátrias Espartanas se reuniam duas vezes por mês, o resto dos dias faziam suas refeições em casa.

Havia, também, festivais de nível cidade-estado para várias deidades que protegiam a cidade, geralmente um festival por ano para cada deus. Enquanto cada phyle e frátria tinha suas próprias divindades adoradas.

Penso que a maioria de nós poderia lidar com esse tipo de coisa, poderia, contudo, reduzir a interação e atritos em alguns aspectos, embora, ainda assim, fosse um meio de promover a comunidade. Talvez todos os membros desses níveis nas mesmas áreas geográficas se encontrariam regularmente, phyle e frátria por phyle e frátria em intervalos regulares independentemente do demos local ou da estrutura da polis nacional - enquanto surgem.

Assim, cresciam organicamente, por digamos deidade patrona, com reuniões orgânicas regionais e nacionais por todos interessados naquela divindade, e eventualmente se aliando a outras frátrias/phyles/thiasoi em aglomerações regionais maiores... O que, eventualmente, poderia formar uma organização nacional ainda maior no lugar de formar organizações regionais que as pessoas entrariam para, em seguida, se aliar a organizações locais decretadas pelo nível nacional.

Deixemos tudo começar no nível familiar, então por interesses locais.



Notas do Tradutor
* O Pritaneu era o prédio público de uma pólis onde se guardava o fogo sagrado.
**  Demoi é o plural de “demos”, que é um grupo, uma cidade ou, que no aspecto político corresponde mais ou menos as ideias que temos hoje de municípios como aglomerados com suas leis, legisladores, formas de governo, enfim.
*** Os thiasoi (singular: Thiasos) são grupos de culto


Como citar este artigo?
Kallistos. Religião Doméstica. Tradução de Ruan Mendes. Diretório de Tradutores Reconstrucionismo Helênico no Brasil, 2013.


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