segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Religião Grega Popular (Martin P. Nilsson)

Uma das principais funções do Diretório de Tradutores é disponibilizar material em língua portuguesa para os leitores brasileiros material de referência para os estudos da religião helênica. Nesse sentido, como parte das comemorações de dez anos do grupo Reconstrucionismo Helênico no Brasil, o Diretório de Tradutores torna público a tradução da obra Greek Folk Religion, publicada sob o título de Religião Grega Popular, do helenista sueco Martin P. Nilsson. A tradução pode ser visualizada no site do RHB junto com as outras atividades que integram as comemorações, ou clicando na imagem abaixo abaixo.


segunda-feira, 8 de julho de 2013

Agathos Daimon

por Ellani Temperance
Tradução de Natalia Sciammarella
Revisão de Thiago Oliveira [retirado daqui]



No segundo dia do novo mês Helênico, nós oferecemos sacrifício para (o) Agathos Daimon, em um dia em homenagem ao “Bom Espírito”.  É uma prática importante, eu venho a compreender que eu não sei o suficiente sobre Agathos Daimon para fazer Seu culto de forma precisa. Este é o motivo deste post do Projeto Blog Pagão examinar sobre Sua adoração.

A mitologia, a aplicação e a existência do Agathos Daimon (ἀγαθός δαίμων) é uma bagunça um pouco confusa. Quando se pesquisa o termo, seis premissas básicas aparecem:

O Agathos Daimon é um Deus, casado com a Deusa Tyche (Ἀγαθή Τύχη, 'Fortuna)
O Agathos Daimon é um epíteto de Zeus, ou ligado a Zeus Ktesios e/ou Zeus Melichios
O Agathos Daimon está a Hermes Khthonios
O Agathos Daimon é um daimon da fertilidade, amarrado à colheita e prosperidade da agricultura 
O Agathos Daimon é um guardião individual do espírito, unido a pessoa, a família, ou ao oikos
O Agathos Daimon é a personificação da consciência pessoal, o até mesmo suas musas

Ainda confuso? Os Deuses sabem que estou.

Alguns fatos primeiro: Todas as fontes, exceto onde Agathos Daimon é identificado como Deus, representam o Agathos Daimon como uma cobra; isto aplica-se para ambas obras como aparência física assumida.  O Agathos Daimon sempre foi positivo em suas vidas, e geralmente era visto como fonte de boa sorte pessoal ou familiar. Libações de vinho (não misturado) eram oferecidas a ele de cada recém aberta garrafa de vinho, e durante banquetes e reuniões, Agathos Daimon recebia a primeira libação. Ao cruzar com uma cobra na estrada, era também de costume verter uma libação, no caso de ser um precursor do Agathos Daimon, ou o próprio Agathos Daimon. 

Eu sinto que devo recuar do Agathos Daimon um momento e falar sobre daimons em geral. Hesíodo nos deu nosso primeiro vislumbre sobre daimons ao escrever sobre os cincos Idades do Homem em Teogonia. Ele nos deu as seguintes referências:

“Primeiro de tudo os Deuses imortais, que residem no Olimpo, fizeram uma raça dourada de homens mortais que viveram no tempo de Cronos quando ele estava reinando no céu. [...] Mas após a terra ter ocultado essa geração – eles são chamados de espíritos puros habitando na terra, e são gentis, libertando do mal, e guardiões dos homens mortais; para eles vaguear por toda parte sobre a terra, vestidos de névoa e vigiar julgamentos e ações cruéis, doadores de riquezas; eles também receberam esse direito real.” 

“...então eles que moram no Olímpo criaram uma segunda geração de prata e de longe, menos nobre. Não era como a raça de ouro nem em corpo e bem em espírito. [...] No entanto, quando a terra também ocultou essa geração – eles são chamados pelo homem de espíritos abençoados do submundo, e, embora eles sejam de segunda ordem, também presta-se honras à eles.” 

A partir desse post, também a seguir, não nas palavras de Hesíodo, porém minhas:

Nas Idades de Hesíodo, fala-se apenas em uma raça que tornou-se daimons; Aqueles da Idade do Ouro, todavia aqueles da Idade da Prata e Heróica também receberam honras após sua passagem, e foram mantidos com alto respeito. [...] Hesíodo faz uma clara distinção entre os Theoi e daimon: Os Theoi são Deuses, daimons são membros da Idade Dourada que ganharam imortalidade. Essa diferenciação é um pouco menos pronunciada nos escritos de Homero, onde Deus e daimon são usados praticamente como sinônimos. 

Essa diferença levou a uma interpretação errônea sobre a natureza da raça da Idade de Prata: eles se tornaram daimons perigosos aos olhos de escritores posteriores (como Platão), e eventualmente os demônios do Cristianismo. Todavia, nem Homéricos ou Hesíodo nunca pretenderam ser assim: todos os daimons eram puros ou imortais; eles agiam como uma força policial para a humanidade. Daimons peenchem um importante buraco na mitologia e na vida: todos os aspectos da vida podem ser supervisionados por seres imortais, sem abandoná-los  – ou adicionando desnecessariamente – ao portifolio dos Theoi. 

Especialmente dentro dos Neo-Platônicos, veio a colocação dos daimons entre os Theoi e a humanidade. Eles são menos poderos que os Theoi, como menor domínio; mais interessados com os acontecimentos diários da vida do que os Theoi são, mas eles, também, são imortais, e merecem honras.  É importante notar, novamente, o destino feito entre daimons e Heróis; semelhante em termos de poder da vida humana, porém diferente em suas identidades, com os heróis tendo personalidades muito marcantes, realizações e culto, e os daimons não tendo nenhuma daquelas.  A primeira libação em reuniões eram ofericdas ao Agathos Daimon, e a segunda aos Heróis.

Retornando à definição de daimons; temos primeiro um tipo de daimon; bons espíritos de Hesíodo que nos vigiam, imortais, porém uma vez mortal. Em seguida – dentro dos escritores como Platão e seus estudantes e filósofos seguintes – dois tipos, um prestativos, o outro perigoso. Curiosamente, Wikipedia relata o seguinte sobre a divisão entre “bons” e “maus” daimons: 

“Um cacodemon (ou cacodaemon) é um espírito mau ou (no sentido moderno da palavra) um demônio. O oposto de cacodemon é um agathos daimon ou eudaemon, um espírito bom ou anjo. A palavra cacodemon veio para o Latim do Grego antigo κακοδαίμων (kakodaimōn) significando um espírito mau, ao passo que daimon seria um espírito neutro em grego e Tychodaimon seria um espírito bom.”
Grifo meu.
 Aquelas são duas definições opostas como em muitas sentenças, levando uma bagunça confusa que iguala os termos 'agathodaemon' (Agathos Daimon?), 'Eudamonio' e 'Tychodaimon'. Um bom exemplo da utilidade da Wiki como o início da pesquisa, mas nunca seu fim. Então vamos tomar esses termos e cavar um pouco mais fundo. Especialmente o termo 'Tychodaimon' parece ter uma fonte clara, mesmo (ou especialmente) em relação ao Agathos Daimon: em alguns cultos devocionais, Agathos Saimon era o uma deidade masculina, que foi casado com a Theia (daimon?) Agathe Tyche. Sua adoração foi conhecida em Atenas, e Eles tiveram um templo em Lebadeia, na Beócia, onde poderia visitar o oráculo de Trofônio – mas só depois de passar um número fixo de dias em um edifício, que era sagrado para a 'Agathei Theoi' - que provavelmente se refere à Agathe Tyche e Agathos Daimon juntos - e provavelmente abrigado uma ou várias cobras(s). Foi neste edifício que o suplicante foi trazido de volta quando retornou do oráculo — geralmente passado a experiência - a fim de se recuperar (Harrison).

Recapitulando: com os Neo-Platônicos veio a noção de que os daimons de Hesíodo são mais inferiores do que os Theoi na ordem hierarquica, ainda que Agathos Daimon fosse adorado como um Theo em Atenas e Labadeia no tempo de Platão, e certamente na época de seu aluno Xenocrates, quem promoveu a teoria de Platão sobre daímōns. Provavelmente Agathós Daímōn, os Theos, tinha sido separdo dos daímōns sem gênero de Hesíodo anos anteriores, e já não era considerado um daímōn no sentido clássico, mas tinha sido elevado a um Theos, digno de sacrifício regular. As perguntas, então, tornam-se: quando e como?

É Interessante notar que Agathos Daimon é mencionado como recebendo libações de vinho não misturado, em vez do padrão de libações misturadas dos deuses olímpicos. Este aspecto ctônico de Seu culto traz-me duas explicações possíveis da natureza do Agathos Daimon: um link com Zeus Melchuio (“aquele amável”), um epíteto ctônico de Zeus, e um link com Zeus Ktesios, o protetor domiciliar.  Obras de artes encontradas em Labadeia sugere um casamento entre Zeus Meilikhios  e Agathe Tyche, Zeus Meilikhios  – como Agathos Daimon e Zeus Ktesios – é um Deus cobra, frequentemente representado como uma também. 

Deve ser dito que Harrison acredita que Zeus Meilikhios  é um epíteto de Zeus sobreposto a um existente Deus cobra: Meilikhios , um ‘doméstico, da casa, autóctones [deidade de] antes da formulação de Zeus’. Ainda mais dizendo: Ainda mais dizendo: o culto da Meilichios foi muito pronunciado na Beócia, onde ele era venerado como um provedor de riqueza (Harrison, p. 21). Eu coloco que, ao mesmo tempo Zeus tornou-se igualado à Meilikhios , assim o fez o Agathós Daímōn; um daímōn da boa fortuna (provavelmente através da fertilidade e boa colheita, as dois maiores bênçãos do Theoi), sobrepondo ao Deus cobra Meilikhios , trocando qualidades positivas enquanto assumindo a imortalidade para Si mesmo. Zeus Meilikhios  adotou as qualidades de limpeza e purificação de Meilikhios.

Como alternativa - ou, talvez, em segundo lugar - Zeus Ktesios (outro Deus cobra) tornou-se igualado Agathós Daímōn, e trouxe a adoração ao Agathos Daimon para o lar, adicionando Suas bênçãos de fertilidade e 'boa sorte' (agora é um termo geral) para o início do novo mês. Isso também explicaria por que Agathós Daímōn era honrado no próprio dia e não na Noumenia, juntamente com Zeus Ktesios; os dois são entidades separadas, que fornecem bênçãos muito distintas - Zeus Ktesios guarda a dispensa de comudida e contribui para a prosperidade da casa, enquanto que o Agathos Daimon fornece as bênçãos de fertilidade e boa sorte, um traço herdado de Meilikhios  e sua esposa, Agathe Tyche, quem nunca fez isso no domínio doméstico.

Então, isso envolve três das teorias conectadas ao Agathos Daimon. Harrison propõe um link como outra deidade conhecida: Hermes Khthonios. Gostaria de encorajar o leitor a ir à fonte para sua explicação, a partir de página 294, mas a evidência - para mim - é frágil, na melhor das hipóteses. Sim, há referência a 'daimon' em escrita antiga, mas como já vimos em Homero, isso não é prova firme da teoria. Além disso, apesar de Hermes ser muitas vezes representado com cobras, não é obrigatório para Hermes Khthonios ser retratado com eles, e não há nenhuma evidência artística de uma forma de serpente para Hermes, não importa o epíteto.

O Agathos Daimon sendo um guardião espiritual pessoal ou a personificação de uma consciência - ou mesmo sua musa - essa idéia parece ser uma evolução neo-platônica dos daimos clássicos de Hesíodo, popularizado por Sócrates (e seus seguidores), que descreveu seu daimon pessoal em seu julgamento. Da apologia de Platão:

"Você tem freqüentemente me ouviu falar de um oráculo ou sinal que vem a mim e é a divindade que Meletus ridiculariza na acusação. Este sinal eu tenho desde que eu era uma criança. O sinal é uma voz que vem a mim e sempre me proíbe de fazer algo que eu vou fazer, mas nunca me ordena a fazer algo, e isso é o que fica no caminho de ser um político".

Como já vimos, Agathos Daimon foi separado de seus primos de Hesíodo até então, e temos de assumir que o termo 'Agathos Daimon' é um termo incorreto para os orientadores espirituais de Sócrates e Platão. Talvez 'eudaemon', na verdade, seria um termo melhor - não um sinônimo como Wikipédia sustenta, mas indicando claramente entidades separadas com uma origem comum.

Até que outra evidência venha a mim, irei cultuar um theos da fertilidade e da prosperidade, Agathos Daimon, no segundo dia do novo mês - a primeira vez no domingo. Como minha teoria-- porque é definitivamente uma teoria!- realiza-se em seus pontos de vista e dentro de sua prática? Estou ansiosa para seus pensamentos.

Notas:
Crédito da imagem: uma moeda de Nyrva, retratando o Agathos Daimon. Publicado em Harisson ' Epilegomena para o estudo da religião grega: e Themis: um estudo de origens sociais da religião grega '.

Não somos todos a mesma coisa, e isso é ótimo!

por Tess Dawson
Tradução de Josie Machado [retirado daqui]


Nota do revisor: O texto a seguir não trata especificamente sobre o Hellenismos; todavia, o escopo do trabalho desenvolvido aqui é maior que o Hellenismos em si, e coaduna com uma preocupação de também esclarecer sobre a diversidade religiosa, e em especial sobre o reconstrucionismo. No texto a  seguir, Tess Dawson, um adepto do paganismo cananeu reconstruída oferece uma leitura acessível e esclarecedora sobre as multiplicidades que o termo "paganismo" composta, e resumo sua proposta na sentença: não somos a mesma coisa, e que bom que não somos.

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Esses argumentos recentes de arquétipos ou super-heróis como divindades é um fator pelo qual eu não me considero mais Pagã e já não tenho me considerado por vários anos. O debate é sintoma de uma divergência maior nas crenças fundamentais entre as religiões politeístas histórico-enraizadas e o Paganismo Neo-romântico convencional.


As duas principais filosofias não podem ser resolvidas, e quanto menos tempo gastarmos tentando convencer uns aos outros qual lado é o correto, mais tempo teremos para gastar construtivamente e pacificamente em esforços inter-religiosos. Eu uso o termo inter-religioso com boas intenções. Não somos das mesmas religiões, nem ao menos das mesmas categorias de religiões. E isso é bom. Respeitar nossas diferenças é importante, pois esse respeito não vem de tentativas de transformar as diferenças em semelhanças. Respeitar diferenças não significa homogeneização da diversidade.

E vamos encarar isso. Existem algumas pessoas antiquadas reforçando diferenças entre Paganismo neo-romântico convencional e religiões politeístas histórico-enraizadas.

Pagãos neo-românticos que acreditam que o ‘eu’ é o núcleo da espiritualidade e que confiam nas idéias de Jung, Freud, Frazer e Campbell frequentemente se sentem perturbados quando alguém diz que eles estão errados – especialmente quando acreditam que um indivíduo não pode estar errado quanto sua espiritualidade. É como se eles acreditassem que a outra pessoa seja tão fechada no dogma que ele/ela simplesmente não entende o que é a verdadeira espiritualidade. Da mesma forma que uma pessoa que adere a uma religião politeísta histórico-enraizada (não uma espiritualidade, mas uma religião) geralmente vai acreditar que os adoradores de arquétipos ou super-heróis de histórias em quadrinhos são blasfêmias. Existe um pequeno meio termo para discussão sobre a vitimização/anti-dogma contra a situação sacrilégio, e essa situação é exarcerbada pela ideia que somos, de algum modo, todos partes de uma mesma categoria de religião chamada Paganismo.

Enquanto tentarmos nos aderir na mesma categoria continuaremos a ter argumentos como esses, porque nós vemos a religião apenas por duas premissas básicas. Da posição de separação, é mais fácil de ser respeitoso com as outras crenças, e as pessoas se sentem menos como nós tentando definir as crenças uns dos outros. Podemos dizer no final do dia, “Eu não concordo com você, mas eu aprecio você”!

Se fizermos as pazes com essa separação, então não haverá argumentos e nem a necessidade deles. Esse argumento se parece muito com Cristãos e Hindus tentando convencer uns aos outros quem é mais correto. Sim, o Paganismo convencional como é agora, com as tendências neo-românticas e as fortes influências ecléticas Wiccanas, é tão diferente das religiões politeístas histórico-enraizadas como o Cristianismo é do Hinduísmo.

Quão diferente a diferença pode ser? Veja essa lista de uma visão global das diferenças entre Natib Qadish (uma religião politeísta histórico-enraizada) e o Paganismo neo-romântico convencional:

• Natib Qadish não é “terra-centrada”. Estamos primeiramente centrados nas divindades, em seguida, centrados na comunidade, e em terceiro lugar respeitamos a natureza. Somos urbanos, civilizados e ‘amigos da tecnologia’. Nós não adoramos a terra ou a “mãe-terra”.
• Divindades são seres vivos individuais separados, dignos do meu mais profundo respeito. Eu me inclino para honrar minhas divindades.
• Nossa religião não é monoteísta ou dualista, é politeísta. As divindades não são facetas de uma força divina, nem representações masculinas/ femininas da dualidade cósmica. E com certeza eles não são arquétipos. Nós também não acreditamos que essas divindades sejam construções da mente humana.
• O Shanatu Qadishtu, nosso calendário sagrado tem feriados diferentes e o ciclo sazonal Mediterrâneo. Isso significa que não comemoramos Samhain, Yule, Imbolc, Ostara, Beltane, Litha, Lughnasadh, ou Mabon. O ciclo sazonal Cananita tem o calor, a estação das secas e a estação das chuvas com uma pequena transição entre as duas, e dois ciclos de crescimento para grãos e frutas.
• Minha religião não é Indo-Européia, mas Afro-Asiática. Não nos baseamos na religião do norte europeu, nem se a forma antiga de nossa religião influenciou o Judaísmo e o Cristianismo, que por sua vez influenciou fortemente o Norte Europeu.
• Não praticamos bruxaria e evitamos a palavra “bruxa”
• Não trabalhamos com “energia”. Trabalhamos com o napshu, um conceito da alma.
• Em geral, não lançamos círculos, usamos sálvia, ou vemos o corpo no sistema de chakra indiano. Usamos mirra para limpeza e temos espaços sagrados. Quanto à sabedoria do corpo, o coração representa a mente, o fígado representa as emoções, os joelhos representam bênção, as mãos representam proteção ou benção, os olhos podem enviar tanto bênçãos quanto maldições, e a cabeça representa honra.
• Não praticamos a Lei dos Três ou Nenhum adágio do mal, mas temos um conceito de “pecado”.
• Fazemos ofertas a nossas divindades. Geralmente essas ofertas incluem carne, mas não de porco.
• Podemos contar com os dispositivos de adivinhação de acordo com o simbolismo Cananeu: interpretando de sonhos (sem conceitos junguianos), lançando sortes, usando as letras Fenícias e vidência. Você não iria a um babalawo [1] para uma leitura de tarô, então, por favor, não espere isso de mim.
• Nossa linguagem religiosa e nossos símbolos religiosos são diferentes porque foram construídos sobre uma cultura diferente.
• Eu cubro minha cabeça em respeito às divindades o tempo inteiro. A maioria de nós, cobre pelo menos durante os eventos sagrados.
• Meu altar é em um templo e eu faço uso apenas para ofertar às divindades, não como um lugar para tchotchkes [2] brilhantes e reflexão pessoal. Eu tenho um santuário menos formal que não tem as mesmas restrições – e sim, eu tenho tchotchkes em meu santuário. Esse pássaro no alto à esquerda? É o meu próprio tchotchke. Um santuário não é o mesmo que um altar, e um altar não é o mesmo que um santuário. A maioria de nós possui santuários.
• Os Cananeus antigos são seletivamente ecléticos, às vezes honrando divindades diferentes de culturas vizinhas do mesmo estilo Cananeu. Mesmo assim, somos cuidadosos com o que fazemos em um ambiente religioso.

Outras religiões politeístas histórico-enraizadas terão seus próprios conjuntos de diferenças da minha, e do paganismo neo-romântico convencional.

Wicca é bom, Neo-romantismo é bom, Paganismo é bom. Ter uma espiritualidade, independente da religião, é bom. Para as pessoas que querem acreditar em arquétipos como divindades, se isso é o que vocês realmente acreditam, tudo bem, mesmo que eu considere isto ateísmo. Como de costume eu respeito diferentes crenças, mesmo que eu discorde; mesmo que eu ache que você está errado, e mesmo se você ache que eu esteja errada. Mas tenho meus limites. Se outra pessoa acredita que meus limites são frágeis enquanto outra acredita que eles são fortes, não me importa, eu os tenho de qualquer maneira. Uma vez ouvi um adágio “não deixe sua mente tão aberta que seu cérebro cairá,” e eu levo a sério.

Para aqueles que querem adorar personagens de histórias em quadrinhos, vão em frente se vocês acreditam, mas, por favor, não esperem que eu leve sua espiritualidade a sério, e, por favor, não esperem que eu pertença à mesma categoria religiosa “Umbrella” que aceita isso. Para registro, eu também tenho duvidas sobre a “otherkin.,” [3] e não acredito em um passado matriarcal. Cthulhu [4] não existe. Aliens não construíram as pirâmides ou Stonehenge. Todo mundo tem limites, mesmo em matéria de crença e religião, e isso não significa que eu te odeio.

Nós não somos todos Um, e isso é bom!

Notas:
1. Nome dado aos sacerdotes exclusivos de Orunmilá-Ifá do Culto de Ifá na religião youruba, das culturas Jeje e Nagô. 
2. Itens diversos.
3. Comunidade de pessoas que se vêem parcial ou totalmente não-humanos.
4. Entidade cósmica fictícia criada pelo escritor de terror H. P. Lovecraft em 1926.

quinta-feira, 4 de abril de 2013

Altares Domésticos - Grécia Antiga e Hoje

por João Miguel Oliveira*
Tradução de Diego Calazans

As pessoas que cultuam os antigos deuses gregos hoje, em sua maioria, costumam fazê-lo sozinhas ou com suas famílias. Nada mais dos imensos festivais mantidos pela polis inteira. Muito pelo contrário – nossa definição de “imenso” foi a tal ponto encolhida que um ajuntamento de dez pessoas já é considerado impressionante.

Podemos ver essa mudança também nos altares. De assombrosas estruturas cercadas por um complexo de templos, tesouros e jardins, eles foram reduzidos a mesinhas, que podem ser usadas para outros propósitos, além do ritualístico. Ainda que isso possa parecer adequado para os menos ortodoxos entre nós, muitas vezes tenho me perguntado se não é de certa forma uma hipocrisia dizer que seguimos a Religião Grega Antiga (a ponto de celebrar festivais de colheita relacionados a climas completamente diferentes) e violar o que diversos pesquisadores têm considerado o mais essencial dos elementos de culto.

O altar (bomos) era de fato sempre o primeiro elemento de um templo. Era o lugar onde o primeiro sacrifício era feito e o templo e o temenos eram construídos ao redor dele, sem que o altar fosse movido, mesmo quando transformado de uma simples cova no chão em uma edificação completa. 

Mas a religião não estava limitada aos templos, festivais civis ou centros de culto. Havia um elemento presente na privacidade do oikos, da casa ou família. Nosso conhecimento desse elemento é incompleto, mas está claro que ele existiu. 

Muitos pesquisadores e devotos focam-se na polis porque esse é o elemento sobre o qual podemos encontrar mais evidências – as crenças populares não são expressas na literatura, ou são expressas apenas posteriormente, e os artefatos domésticos, diferente das grandes peças religiosas, não sobrevivem ao passar das eras. Por essa razão não sabemos como a maioria dos altares domésticos era, nem quem os usava ou o modo como eram usados. 

Pressupõe-se usualmente que os altares eram construídos em locais sagrados. As casas, porém, não eram temenoi. Todo tipo de atividade humana acontecia o tempo todo e isso conduz a um impasse – se os deuses são repelidos pelo miasma, como pode haver altares e rituais dentro da casa? 

Primeiro, há bastante evidência de que as casas podiam ser purificadas e que havia, até mesmo, especialistas nesse tipo de atividade. Além disso, na peça “O Fantasma”, do comediógrafo grego Menandro, aprendemos que qualquer um pode criar um espaço sagrado adotando comportamento ritual e que esse espaço continua sendo sagrado apenas pela duração do ritual.

Segundo, embora seja claro que para os grandes festivais e templos o miasma fosse uma preocupação relevante, não podemos dizer que os deuses em si são realmente repelidos pela poluição ritualística – quando devotos ao beber vinho fariam uma libação ao Daimon; no parto, Ártemis está presente; no sexo temos Afrodite; e mesmo Apolo, deus da purificação e da ilha sagrada de Delos onde as preocupações com o miasma foram levadas ao extremo, vinha ao auxílio de seu sacerdote após uma oração sem que nenhuma purificação estivesse envolvida. 

De fato, sabemos sobre diversos cultos que foram mantidos na privacidade da casa: Zeus Ktesios, a quem era oferecida a panspermia; o Dioskouroi a quem as pessoas ofereciam refeições (theoxenia) e cujos símbolos eram as ânforas; Zeus Herkeios com seu altar onde uma guirlanda viçosa era sempre encontrada; e mesmo a Herma, na entrada. E, claro, a sagrada Héstia, o coração que abençoava as refeições, transformando em evento sagrado cada ocasião em que a família e os convidados reuniam-se para comer.

Os altares tradicionais eram feitos de pedra, ossos, cinzas, tijolos, ou simplesmente terra. Por tradicionais, quero dizer os altares dos templos. Esses estavam usualmente do lado de fora e podiam estar ou não preparados para queimar sacrifícios e podiam ou não ser elevados. 

Dos altares domésticos temos menos exemplos e descrições. Sabemos que eles ficavam comumente no pátio e jardins e eram provavelmente parte de um santuário, mas eles eram tão variados quanto as pessoas que os mantinham. Alguns eram pequenos buracos na parede com uma imagem. Muitos eram feitos de pedra ou terracota e eram de tal forma que podiam ser transportados, para que as pessoas pudessem levar seu altar com elas quando se mudassem. A maioria não era decorada, embora tenham sido encontrados alguns com o nome do deus ao qual eram dedicados, ou com decoração embutida. Outros não ficavam em exposição e eram feitos do que quer que a pessoa tivesse disponível e duravam apenas o tempo de execução do ritual.

Há muitas semelhanças com os altares dos templos, assim como com as hermas. As principais diferenças eram o tamanho (muito menores), o fato de que muitos eram temporários e podiam ser movidos, e a existência de altares portáteis.

Sabemos que esses altares eram comuns, porque, mesmo tendo sido encontrados somente poucos, eles são muitas vezes referenciados na literatura e Sócrates, em Eutidemo, chega a dizer “I too have altars and household hiera and patroia and artefacts of the same type as other Athenians”**. De fato, eles eram tão comuns que Platão os critica em seu diálogo Leis. 

O que não sabemos o bastante é como eles eram usados. Era o patriarca que costumava conduzir os rituais que poderiam estar relacionados a mudanças na composição e estrutura da família (tais como casamento, nascimento, maturidade e morte) ou que deveriam manter um relacionamento com específicos deuses domésticos e familiares. 

Os altares eram usados tanto para rituais regulares quanto pontuais e entre os itens comuns que você poderia encontrar em um altar estavam incensos, bolos, vinho, roupas e guirlandas. Algumas residências possuíam diversos altares, e Xenofonte nos diz que alguns eram usados para sacrifícios frequentes, enquanto outros eram reservados a festivais especiais. 

A evidência dos cultos domésticos contrasta com a dos cultos em santuários e templos em termos de variedade e escala e isso reflete as necessidades religiosas pessoais e os motivos de cada família e pessoa. De fato, isso fornece um argumento em favor do uso de altares domésticos e mesmo da criação de versões pessoais (e mais significativas) de altares e festivais que eu penso que todos nós podemos aprender.

Referencial Bibliográfico

- Fontes Primárias
Aristófanes, As Vespas
Platão, Leis
Platão, Eutidemo
Xenofonte, Econômico

-  Fontes Secundárias
ADKINS L, ;ADKINS, R.A. Handbook to Life in Ancient Greece. Facts on File. 2005

BURKET, W. Greek Religion. Harvard University Press. 1985 [Em português: Religião Grega na Época Clássica e Arcaica. de Walter Burkert. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993].

NILSSON, M.P. Greek Folk Religion. University of Pennsylvania Press. 1972

RAWSON, B. 2011. A Companion to Families in the Greek and Roman Worlds. Wiley-Blackwell, 2011.

ROBINSON, D.M.. A Preliminary Report on the Excavations at Olynthos. American Journal of Archaeology. 1929.

THOMPSON, D.B.; GRISWOLD, R. E. Garden Lore of Ancient Athens. American School of Classical Studies. 1963

THOMPSON, D.B. An Ancient Shopping Center: the athenian agora. American School of Classical Studies at Athens. 1993.



Notas do Tradutor
* O presente artigo foi extraído da edição de inverno/ 12 newsletter do grupo Neokoroi. Clique aqui para acessar a página da revista.

**Mantivemos a tradução, do grego para o inglês, dada pelo autor a essa passagem e acrescentamos uma possibilidade em português: “Eu também tenho altares e bens sagrados domésticos e pátrios, e artefatos, como os que possuem os outros atenienses”.


Como Citar este artigo?
OLIVEIRA, João Miguel. Altares Domésticos. Tradução de Diego Calazans. Diretório de Tradutores Reconstrucionismo Helênico no Brasil. 2013.


Religião Doméstica

Por Kallistos, no site Neos Alexandria

Tradução de Ruan Mendes
Revisão de Thiago Oliveira

Estava lendo um livro chamado “The Ancient City: a study of the religion, laws, and institutions of Greece and Rome” de Numa Denis Fustel de Coulanges, pela editora Dover Books [Nota do Tradutor: “A Cidade Antiga: um estudo da religião, leis e instituições da Grécia e Roma”. Esse é um estudo clássico do helenismo, tendo sido, entre várias publicações, recentemente editado pela Martin Claret – clique AQUI para ter acesso ao texto],uma reedição de um livro francês de 1864. O autor baseia-se principalmente em textos antigos e inscrições, normalmente citadas nos rodapés. Como era costume na época, a maioria das citações está em sua lingual original, porque pessoas educadas saberiam lê-las de qualquer maneira...

O livro traz uma interessante discussão sobre a religião, as tradições e costumes da antiga cidade e seus habitantes. Um ponto importante, que algumas organizações de hoje esqueceram, é que a cidade foi um desenvolvimento tardio. Ela evoluiu como uma federação. Fustel de Coulanges traça um desenvolvimento orgânico dessa federação ao longo do tempo. Esse tipo de evolução é, talvez, um bom modelo para emularmos uma tentativa de desenvolver grupos maiores.

A cidade encontra suas raízes na religião e o autor busca discutir as bases religiosas da cidade, sua centralidade voltada si mesma e a mistura de religião e vida. É essa a chave para o desenvolvimento da cidade antiga.

Tudo começa na religião doméstica. A família tinha sua própria religião e seus próprios deuses, deidades domésticas e seus ancestrais. (Penso que nos dias atuais tendemos a esquecer da importância do culto aos ancestrais no mundo antigo, que rivaliza com a mostrada no Oriente Confucionista). O chefe do lar é o sacerdote da família, e é ele quem mantém o fogo sagrado vivo. Cada pessoa era independente das interferências dos outros; e é o foco da vida do dia-a-dia religioso.

Com o passar do tempo, as famílias começaram a se unir, mas ainda assim mantinham suas religiões originais, embora formassem clãs, frátrias ou cúrias, com seus próprios deuses e patronos, e seu próprio sacerdote chefe, que tendia à adoração perante o fogo sagrado. Em seguida, vários clãs se juntaram e formaram tribos ou φυλές (phyles), também com seus fogos sagrados distintos e sacerdotes. Em intervalos regulares, os cidadãos podiam, como na Apaturia, se unir aos outros da sua frátria/cúria ou phyle/tribo para uma refeição comunal, sacrifício e entoar hinos e orações.

Então, no final, as tribos seriam unificadas por um único homem ou em face aos perigos de fora. A cidade foi fundada pelo fundador ou legislador - que estabelecia as leis, acendia o fogo da cidade e escolhia os deuses oficiais que seriam seus protetores - assim como cada tribo tinha seu herói deificado e cada clã e família seus antepassados e deidades domésticas.

O fundador era o primeiro rei, depois seria substituído por prutaneis, basileus desprovidos do status de realeza. Muito embora eles mantivessem o fogo sagrado aceso e liderassem os rituais sagrados no lugar do rei. (Fustel menciona que Prytane era um sinônimo para Basileus nos textos antigos). Eles também se encontravam numa refeição comunal com os deuses no Pritaneu* todos os meses juntamente com cidadãos selecionados para reforçar a ligação com o povo.

Esse desenvolvimento era orgânico e fluia naturalmente. Penso que um dos maiores problemas com muitos grupos Helênicos (e de Religio) foi que estes pularam direto para a cidade, estabelecendo magistrados e prutaneis, correndo direto ao modelo cidade-estado, então criando o demoi**  (novamente uma organização mais política, embora religiosa, sendo uma espécie de “minipolis”).

Como alternativa, acredito que deveríamos nos focar em ajudar as pessoas a desenvolverem seus próprios cultos domésticos para, em seguida, os unir em equivalentes a genos e frátrias (talvez por interesses em comum) e depois em tribos (quem sabe tendo tribos de determinação geográfica, o que era frequentemente o caso, como as dez tribos de Atenas e as trinta e quatro tribos de Roma).Tendo as tribos com seus demos e proteções poderíamos então estabelecer uma cidade-estado nacional e evoluir. Dessa maneira teríamos produzido situações mais estáveis, permitindo assim crescimento no lugar de tentar forçar uma organização nacional sobre um grupo tão pequeno e disperso como as comunidades pagãs clássicas greco-romanas.

Adicionalmente, uma vantagem do modelo de desenvolvimento orgânico é que as pessoas com interesses semelhantes, ou com focos em deidades similares, poderiam formar algo como uma frátria ou um clã que poderia, por sua vez, formar tribos geográficas com outras frátrias. Eu percebo que alguns formaram thiasoi*** ao longo dessas linhas, e talvez os thiasoi ou frátrias poderiam ser as bases orgânicas que crescem dentro de outras organizações, que formam uma federação ou uma organização do tipo guarda-chuva.

Isso requereria provavelmente mais diplomacia que presenciamos em nossa comunidade, embora eu ache que seja viável. O elemento interessante no livro foi que ele enfatizou o quanto as frátrias e as phyles (clãs e tribos) eram mini-federações próprias, com os níveis mais baixos sendo mais ou menos autônomos, com os níveis superiores sendo um pouco mais diversificadas em relação as deidades adoradas. 

Essa federação das federações permitiria mais distinção e que as preferências pessoais tenham mais importância... Sem forçar todos a um único molde, o que parece ser parte do problema que enfrentamos. Algumas pessoas parecem normalmente ter pouca vontade de se aventurar muito longe de suas deidades de maior interesse (ou patronos, se você desejar). Assim, cada nível poderia encontrar se encontrar esporadicamente (the phyles and phratries met fairly often, but less often the farther one went up) para refeições comunais. A Apatouria, por exemplo, acontecia uma vez ao ano, contudo eu tenho certeza da existência de outras reuniões de frátrias. As frátrias Espartanas se reuniam duas vezes por mês, o resto dos dias faziam suas refeições em casa.

Havia, também, festivais de nível cidade-estado para várias deidades que protegiam a cidade, geralmente um festival por ano para cada deus. Enquanto cada phyle e frátria tinha suas próprias divindades adoradas.

Penso que a maioria de nós poderia lidar com esse tipo de coisa, poderia, contudo, reduzir a interação e atritos em alguns aspectos, embora, ainda assim, fosse um meio de promover a comunidade. Talvez todos os membros desses níveis nas mesmas áreas geográficas se encontrariam regularmente, phyle e frátria por phyle e frátria em intervalos regulares independentemente do demos local ou da estrutura da polis nacional - enquanto surgem.

Assim, cresciam organicamente, por digamos deidade patrona, com reuniões orgânicas regionais e nacionais por todos interessados naquela divindade, e eventualmente se aliando a outras frátrias/phyles/thiasoi em aglomerações regionais maiores... O que, eventualmente, poderia formar uma organização nacional ainda maior no lugar de formar organizações regionais que as pessoas entrariam para, em seguida, se aliar a organizações locais decretadas pelo nível nacional.

Deixemos tudo começar no nível familiar, então por interesses locais.



Notas do Tradutor
* O Pritaneu era o prédio público de uma pólis onde se guardava o fogo sagrado.
**  Demoi é o plural de “demos”, que é um grupo, uma cidade ou, que no aspecto político corresponde mais ou menos as ideias que temos hoje de municípios como aglomerados com suas leis, legisladores, formas de governo, enfim.
*** Os thiasoi (singular: Thiasos) são grupos de culto


Como citar este artigo?
Kallistos. Religião Doméstica. Tradução de Ruan Mendes. Diretório de Tradutores Reconstrucionismo Helênico no Brasil, 2013.


Presentear na Antiga Hellas


Por Elani Temperance, do blog Baring the Aegis
Tradução de Diego Vilaça

Dar presentes aos amigos, parentes, ou até mesmo conhecidos e completos estranhos é uma longa tradição. Tal tradição já existia antes mesmo da Hellas clássica, mas foi, com certeza, uma parte vital da sua cultura. Essa prática estava ligada a kharis e a xenia. Presentes eram trocados entre os monarcas das cidades-estados para criar uma boa relação, e era uma parte importante da diplomacia. Todas as oblações, ofertas de agradecimento e pinakes foram presentes dos mortais aos Theoi. Competições esportivas sempre eram concluídas com um preço – um presente – atribuído ao vencedor. Presentes eram dados ao parceiro submisso em uma relação pederástica, e a prostitutas favorecidas e servos. Os presentes tinham um papel muito mais importante na sociedade helênica antiga como um todo do que na nossa atualmente. A troca de presentes na antiga Hélade não era apenas um evento social, no entanto. Havia muito mais na prática do que se pode supor, e hoje vamos olhar para essa tradição em maior detalhe.

Eu falei da importância dos presentes na xenia antes. Um presente dado como parte de uma hospitalidade ritual se chamava xenion (ξεινήιον). Este xenion era esperado por ser caro, e era dado ao visitante no momento de partida. É necessário dizer que esta prática era executada principalmente pela nobreza, ou pelo menos pela elite, e acontecia geralmente quando um homem de igual posição social de outra nação ou cidade-estado ia fazer uma visita. Na Odisseia, Telêmaco, filho de Odisseu, recebe de Menelau uma taça feita pelo próprio Hefesto:
Mas fique aqui no palácio, até o décimo-primeiro ou décimo-segundo dia, e eu te enviarei com honras, e finos presentes, uma carruagem brilhante com um trio de cavalos, e uma gloriosa taça para verter libações aos imortais deuses, lembrando-me todos os dias.

A prática de presentear alguém de outra nação a qual você poderá nunca ver de novo pode parecer contraditória, mas é exatamente o contrário. Ao presentear um estrangeiro com um grande presente, você só não estabelece kharis entre vocês dois assim como você deixa a pessoa em débito com você: eles não podem retribuir sua gentileza no momento, mas eles retribuirão quando você for visita-los, ou quando você estiver precisando. Além disso, a parte que recebe a gentileza vai para casa com histórias sobre sua hospitalidade e riqueza, impulsionando a estatura da família e da nação. Ela aumenta a honra de ambos, o que era muito importante para os antigos helenos. Os presentes, nesse contexto, funcionavam como meios de comunicação, legitimação e mediação entre benfeitores e cidades.

A troca de presentes era ainda muito importante além da elite, especialmente entre os homens. A prática era uma característica do symposion, que ocorria entre os homens em um relacionamento pederástico, assim como entre homens em pé de igualdade. A pederastia consistia em um homem maduro tomar um jovem rapaz como seu pupilo e amante. Essa relação não era sobre amor: era uma construção social que permitia ao menino tempo para conhecer homens influentes, e trabalhar a si mesmo. Por causa disso, existiam vários atos rituais que envolviam esse tipo de prática, entre os quais a distribuição de presentes, do mentor para seu pupilo. Três presentes eram tradicionais: um traje militar, um boi e uma taça para bebidas, mais os jovens certamente recebiam presentes mais caros.

Um dos lugares em que o jovem amante poderia ser encontrado era o symposion. Ao permitir que o jovem frequentasse o symposion, era permitido aos adultos instruí-los para a vida adulta e para a guerra, em particular. Uma vez que os meninos crescessem, eles se tornavam um dos homens, tomando jovens como amantes e ensinando-os sobre a vida de um homem adulto. A troca de presentes, nesse contexto, permitia à comunidade uma maior aproximação, e a preparação para a vida de um jovem como um homem. Presentear – os jovens amantes assim como aqueles de igual idade e status – permitiu aos homens ensinar a importância da distribuição e redistribuição da riqueza, que era um fator fundamental da sociedade (principalmente da ateniense). Significava, também, um símbolo de status: se alguém teve tempo de visitar o symposion e dar caros presentes, eles não eram apenas cidadãos, mas cidadãos prósperos, uma clara marca de que eles aptos para ter uma maior responsabilidade dentro do cenário político da cidade.
  A maioria desses exemplos vem de cidades-estados ricas (como Atenas), mas há evidências de trocas de presentes em outras cidades-estados também. Esparta, por exemplo, desaprovava a ostentação de riquezas, mas também trocava presentes. Esta prática, entretanto, era mais usual no cotidiano dos próprios cidadãos – jogos, mel, talvez um cão de caça – e eram honras concedidas às pessoas em caso de grandes eventos, ou em uma relação assimétrica. Um vencedor espartano de importantes eventos esportivos, por exemplo, seria recebido na guarda real do rei, enquanto os vencedores atenienses seriam recebidos com comida, habitação e status.

Outra forma de presentear seria de um cidadão rico para a comunidade. Essa prática era conhecida como “evergetismo”, do grego “εὐεργετέω”: “eu faço coisas boas”. Enquanto o dinheiro gasto pelo cidadão desta forma era, de fato, uma ação voluntária, ele era socialmente obrigado a participar da prática. Muitas estradas e edifícios públicos foram construídos desta forma, e, portanto, levavam o nome do cidadão que doou os fundos – algo que encontramos evidências arqueológicas para esses dias.

Presentear era de vital importância nos tempos Arcaico e Clássico (inicial), principalmente em um contexto social, étnico, econômico e político. No período Clássico – que testemunhou o desenvolvimento de elaborados sistemas monetários e de leis – a troca de presentes, e os benefícios associados a essa prática tornaram-se menos importantes no contexto econômico e político, embora tenha mantido sua importância nos sistemas sociais e religiosos. O presentear e a reciprocidade voltaram aos palcos atenienses, no entanto, no período Helenístico, grande parte do ocorrido anteriormente ocorreu.

O ato de presentear foi de uma importância sem precedentes para os antigos helenos, mas perdeu muito de sua posição atualmente. Para aqueles que reconstroem a antiga religião helênica, pode ser um bom exercício examinar essas práticas, e implementar uma troca simbólica. Presentes caros não são necessários, mas um presente de despedida pelo anfitrião pode lembrar ao grupo (quando tornar a se juntar) as gentilezas recebidas e os presentes do grupo serão bem-vindos.



Como citar este artigo?
Temperance, Elani. Presentear na Antiga Hellas. Tradução de Diego Vilaça. Diretório de Tradutores Reconstrucionismo Helênico no Brasil, 2013.

quarta-feira, 27 de março de 2013

Sete Teses sobre o Helenismo


(As teses seguintes constituem-se como exclusivamente do grupo Thyrsos, podendo diferir-se das teses ou crenças de outros grupos helênicos organizados)


do Grupo Thyrsos Hellenenes  Ethnikoi
Tradução de Diego Vilaça
Revisão de Thiago Oliveira

Helenismo
A palavra helenismo constitui um termo moderno que denota a cosmovisão pagã pré-cristã. Com o termo helenismo, não nos referimos aos cidadãos que têm nacionalidade proveniente do Estado helênico moderno, nem às pessoas de tal origem. O significado de Helenismo engloba todos aqueles que, de livre vontade, escolhem seguir naturalmente a desenvolvida etnia helênica, não monoteísta, e seu modo de pensar. Helenismo, como termo, engloba todo sistema de crenças do período étnico grego que é definido como pré-cristão, cujo início histórico pode ser localizado na Arcádia e na Creta minoica, assim como as crenças daqueles que continuaram a defender essa cosmovisão particular em um período posterior até os dias atuais.

Principais Características
Está claro que a principal característica do Helenismo é sua visão religiosa, isto é, politeísta, que constitui a base sobre a qual a civilização helênica do período pré-monoteísta se desenvolveu, e também é a característica primária sobre a qual podemos nos apoiar para entendermos a cosmovisão helênica. Qualquer tentativa de corte de crenças de culto do Helenismo é um ato de amputação, e qualquer sistema derivado desse ato só pode ser deficiente.

Nível Político
O Helenismo não pode ser um ramo ou não pode depender de qualquer ideologia política moderna específica, visto que ele precedeu todas elas. É impossível para qualquer partido político existente atualmente gerir ou abraçar exclusivamente o Helenismo, uma vez que todos eles devem suas existências a uma escola de pensamento que está há milhas de distância do caminho grego enquanto suas dinâmicas derivam, na melhor das hipóteses, somente de um específico aspecto que eles pegaram emprestado do Helenismo. Qualquer tentativa de identificar o Helenismo com algum partido político específico, seja ele pertencente à direita ou à esquerda, do mais extremo ao mais modesto deles, destina-se à falha, uma vez que suas partes são incapazes elevar o ônus especial do Helenismo e, especialmente, aquela região do Helenismo chamada politeísmo.

Como um Sistema
O Helenismo é filosoficamente revolucionário. Propõe abertamente a disputa e a proibição do modo de vida moderno, pois considera que esse modo priva o ser humano da espiritualidade e da justiça e se baseia quase exclusivamente em uma percepção material e tecnocrática degradante ao humano enquanto ser. Esse modo de vida prática e comprovadamente também priva o humano do desenvolvimento enquanto ser, como resultado do confinamento crônico desse sistema de pensamento. Helenismo não pode ser representado por uma definição, mas ele demanda que cada pessoa assuma sua responsabilidade em toda e qualquer dimensão social e especialmente à dimensão ligada com atividades políticas.

É um dogma?
Se pelo termo dogma estamos nos referindo à etimologia moderna da palavra, que significa um hermético, final e irrevogável sistema de pensamentos que requer certa vista grossa, considerando cada oposição como uma perigosa facção, então é claro, e com grande ênfase, que a resposta é não!

A pletora de ideias, sua diversidade e seu objetivo de cobrir as necessidades sociais em cada diferente momento histórico diferente constituem as pedras-fundadoras do Helenismo, que não é privado de regulamentos sobre a vida ou comportamento, mas eles são destilações de muitas e diferentes escolas filosóficas que tem o ser humano e sua relação com os deuses como centro comum, o ambiente natural (que não consideramos como nossa propriedade, mas, ao contrário, nos consideramos seus hóspedes), a humanidade como uma entidade e o nível de relações interpessoais, e o caráter pessoal de cada pessoa. Os antigos regulamentos podem ser colocados sob disputa, sem medo, se uma nova teoria fornecer argumentos e provas através de um sistema organizado que pode oferecer mais vantagens em favor dos seres humanos e sua relação com todas as correlações feitas acima.

O testemunho de todos esses pontos é fornecido pela existência de várias percepções em diferentes períodos da civilização helênica, que não são separados, mas que fazem o Helenismo completo.
A relação com outras tradições étnicas

Quanto às tradições europeias as quais estamos relacionados tanto historicamente quanto geograficamente, o Helenismo faz o que sempre fez. Ele coexiste e interage, apoiando a criação de uma ampla Europa gentia, que tem seu ponto de partida no paganismo helênico, vai para o Cultus Deorum romano e depois vai além, a cada e toda outra forma de “paganismo” de todo e qualquer povo em nosso Continente-Mãe Europa.

Doravante, isso aparece claramente como um fato histórico, desde os séculos que se passaram, os fatos/marcos são conhecidos, e agora temos o conhecimento e a tecnologia necessária para promover a comunicação. Assim, todas as tradições europeias adquirem um parâmetro comum, mas, ao mesmo tempo, elas mantêm suas identidades nacionais essenciais, uma vez que essa característica é a base sobre a qual se sustenta toda a construção.

Fora da Europa, as tradições étnicas não-monoteístas de outras nações são, claramente, muito mais próximas ao caminho helênico do que qualquer sistema cultural não-étnico.

Voltar no tempo?

É natural pensar que o Helenismo é tecnofóbico, ou pede aos seus membros que andem por aí vestindo roupas arcaicas. Algo assim poderia ser uma duplicação romântica, ou, na pior das hipóteses, uma situação psicopatológica. No entanto, a tecnologia bem como a estética é colocada sob um novo ponto de vista no Helenismo.

A tecnologia serve às necessidades humanas, e – mais importante – não se volta contra o ambiente natural que constitui um ser vivo, e não apenas material sem vida, é necessário traçar um paralelo com a sociedade.

Como a estética nas construções, mas também no vestuário e em qualquer outro aspecto, nós definitivamente acreditamos que ela tem que criar a Harmonia e deve Elevar o Espírito, sem ter medo de constantemente propor algo novo e atualizado.

Finalmente, é duplamente errôneo achar que o Helenismo é apenas um fetiche estético para aqueles que não se sentem confortáveis com suas formas de vida e que procuram se esconder dentro de uma concha fora do tempo e do espaço.


Como citar este artigo?
Grupo Thyrsos. “Sete Teses sobre o Helenismo”. Tradução de Diego Vilaça. Diretório de Tradutores Reconstrucionismo Helênico no Brasil, 2013.